Friday, December 30, 2005

"Conso(l)ado" por JVC (Jornal de Tondela)



É véspera de Natal e aqui estou eu, só, sentado em frente à lareira na casa dos meus Pais, o computador nos joelhos a escrever este texto. Ouço vozes lá para os lados da cozinha, misturadas com o som dos tachos, das panelas e dos talheres a baterem qualquer coisa, presumo que estejam a bater os ovos para fazer rabanadas, aqueles doces de pão molhado de que alguém gosta muito.

A chama da lareira de vez em quando vai-se abaixo e eu tenho que chamar o meu Pai para ele por lá mais umas cavacas senão daqui a um bocado fico cheio de frio. Não é maldade minha, antes pelo contrário, é a melhor maneira de o tirar da cozinha e o livrar do trabalho de descascar as batatas para o cozido de logo. Se vissem a alegria dele quando eu o chamo compreenderiam a sua satisfação. A vida é isto mesmo, eu coço as costas dele e ele coça as minhas. Quando depois do almoço fomos obrigados a tirar as cascas às castanhas com que se vai rechear o perú que amanhã vamos comer ao almoço, estranhamente ele recebeu um telefonema de um amigo que durou mais de três quartos de hora e que só acabou quando também se acabaram as castanhas. A mim é que ninguém telefona nestas alturas. Curiosamente, logo a seguir recebeu a visita de um irmão e, como manda a boa educação, lá foram os dois para a sala. Tendo eu recebido a mesma educação, não tive outro remédio e lá fui fazer-lhes companhia o que parece ter provocado algum alvoroço. É claro que ninguém leva em conta o facto de eu, hoje, já ter feito a minha cama, com grave prejuízo da minha futura hérnia que me vai doer por causa desse esforço.

Das vozes que ouço, sobressai a da minha Mãe. Quem é vivo sempre aparece, quem é vivo sempre aparece, ouço-a dizer. Ou me descobriram ou chegou alguma visita. Arrisquei-me e fui lá ver. Não era ninguém; apenas tinha encontrado, na máquina de lavar louça, uma taça de que andava, desesperada, à procura. Esta mulher cansa-me! Tenho quase um quarto de século a menos que ela e já não tenho forças para fazer metade do que ela faz. Desde que se levanta até que se deita, o turbo funciona sempre a todo o gás. Quando, daqui e trinta e tal anos, se lhe acabar a genica, vamos morrer de fome. Nem é bom pensar nisso. Agora que voltou à escola e está a aprender inglês até já dá valor às férias e, como ela diz, que bom que é não ter trabalhos de casa para fazer.

O meu Pai acaba de chegar com mais um braçado de lenha; digo-lhe que parece cansado. Pudera, responde, ainda não parei, mas já disse à tua Mãe que, para o ano, não se faz nada cá em casa e que se encomenda tudo de fora. Querias, penso eu, mas não me atrevo a desenganá-lo!

Parece que vou ter que interromper porque alguém tem que levar o lixo lá fora e, não tarda nada, temos que nos vestir para o jantar. Não é que estejamos nus, mas nesta noite especial, cá em casa os homens vestem-se a rigor, de fato e gravata e as mulheres esmeram-se ainda mais do que o costume. Afinal, a noite da consoada é muito especial e como tal, a Família, porque é dela a noite, deve celebrá-la a preceito...