Thursday, October 06, 2005

"O Fado" por JVC (Jornal de Tondela)



Hoje é domingo, dia de descanso e por isso há que fazer um esforço suplementar para nada fazer. Dá algum trabalho mas vale a pena chegar à noitinha, vestir o pijama em frente ao espelho e antevendo o que será o dia seguinte, essa segunda feira maldita, poder pensar com orgulho e peito feito, missão cumprida! Hoje, mais uma vez, consegui não fazer nada. A única nódoa a manchar este monumental dia de absoluto ripanço é esta crónica mas que apesar de tudo até acaba por realçar o prazer da preguiça.

E bem precisava deste descanso porque ontem fui aos fados e, claro, deitei-me tarde, bem fumado e bastante mal bebido. Mal bebido porque até parece que estava nalgum país sem videiras, tal o preço dos vinhos, tão caros que nem lata tenho para dar um exemplo. Mas já que insistem, fiquem a saber que pelo mesmo preço de um tintol de média qualidade, quase que pagam o almoço de quatro pessoas num restaurante aí da zona de Tondela onde já fui algumas vezes com os avós paternos dos meus filhos.

Felizmente só nos dá para ir a banhos na nossa cultura quando o rei faz anos, caso contrário já tinha tirado um curso acelerado de lavar pratos com letra protestada do meu banco e música do maestro da massa falida. Talvez por isso se explique que bastante mais de metade da clientela era estrangeira.

As vozes eram bastante boas e os músicos dedilhavam bem; um dos cantores, um juiz desembargador reformado, especialista em fados de Coimbra, lá nos pôs todos a cantar, afinal as terras do interior têm mais encantos quando a malta se pira e vai por aí fora, correndo mundo cá dentro. Deu-me a mim, e se calhar o todos os outros, uma nostalgia dos anos em que por lá estudei, mesmo não tendo frequentado nenhum estabelecimento de ensino por aquelas bandas.

Gosto mais do género do fado que o juiz canta, mas o repertório escolhido pelos que cantam o fado alfacinha também não esteve nada mal. As letras partem-nos o coração e versam os temas do costume, o meu amor, que eu amo tanto e que me passou ao lado e fez de conta que eu tinha escarlatina evitando qualquer contacto físico e assim atirando-me para uma cama de um hospital publico em dia de greve dos enfermeiros e doutores e outras coisas do género.


Mas a que mais me tocou mais foi aquela que nos conta a história duma desgraçadinha que andava, sossegadinha, no gamanço para dar de comer aos seus, um boneco nas mãos da justiça ou a justiça nas mãos da boneca, uns a querer mandá-la para o xelindró e os outros a quererem recompensá-la com umas férias prolongadas num pais tropical, abençoado e por Deus e bonito por natureza, por fim obrigada a fugir, uma mão à frente e a outra também, saudades do bacalhau com todos, finalmente o regresso auto imposto, arriscando tudo, conforto, dinheiro, jóias peles, o vergar a Lei, o perdão, os risos, as palmas, as luzes da ribalta, o sucesso, as câmaras!
O lancinante trinar das guitarras realçava o sofrimento vivido pela fadista de negro vestida, feito de esgares faciais, olhos fechados e virados para o céu, puxões bruscos e desesperados das mãos no xaile, qual corpo de um tacho imaginário, que com dolorosa saudade se precisa de segurar, acariciar e embalar.
Fosse o preço do tintol mais em conta e tinha afogado as mágoas. De vez!